segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

E da sabedoria ameríndia: uma maneira de se pensar o trabalho




A significação da ordem em oposição ao caos impera no conceito da palavra cosmos – oriunda do grego kosmos. A partir desta perspectiva constrói-se o sentido da realidade do homem andino. A ordem atrela-se, intrinsecamente, à relação do tempo e do espaço com o equilíbrio das dinâmicas naturais. É sob estas dinâmicas naturais e sob a lei da natureza que se determina e se constrói a sabedoria e, sobretudo, a sobrevivência dos ameríndios.
O modelo eurocêntrico da colonialidade instituiu ao pensamento ocidental uma concepção unitária do processo de origem criadora de todo o cosmo universal. Esta noção configurou um olhar individualista, ratificando a perspectiva de que tudo e todos se submetem a uma unidade criadora.
Cholitas no Lago Titicaca, na Bolívia
A gênese bíblica do cosmo consolidou a mitologia do pecado original como precursora do embate entre criador e a submetida criatura. A unidade criadora, desta forma, é responsável pelo nascimento da concepção punitiva do trabalho, instituído pela sua aptidão em subjugar o homem à opressão e ao castigo.
Vinculado ao pensamento ocidental, o trabalho foi incorporado à dinâmica sistêmica dos processos capitalistas. Nessa perspectiva, a ocidentalização do homem engendrou a atribuição do trabalho como uma ferramenta de acumulação de riquezas por meio da exploração e capitalização dos recursos naturais.
Induzido à condição de exterioridade perante a natureza, o homem ocidentalizado almeja transmutar o castigo do trabalho para a busca pelo prazer egoísta, representado pelo acúmulo de riquezas.
O conceito congregacionista da cosmovisão andina pressupõe a totalização e a não fragmentação do meio cósmico, da natureza e do homem. Há uma reciprocidade entre os elementos naturais, a vida social e as ações humanas sempre direcionadas ao cosmo.
A realidade andina baseia-se na noção cíclica do equilíbrio da dimensão humana, da dimensão cósmica e da dimensão natural. Não há a submissão do homem enquanto criatura de uma unidade criadora, característica que integra veementemente o homem como elemento necessário à construção e manutenção de um espírito único e coletivo.
A noção de pacha elucida a alteridade e o respeito que o homem estabelece com a natureza, uma vez que, nesta cosmovisão, para garantir a sobrevivência humana, é necessário garantir a manutenção da infinidade e interação cíclica do tempo, do homem e do espaço. É nesta alteridade que, na sociedade dos Andes, habita a inexistência do individualismo. A lógica dos ameríndios formaliza o coletivismo ou comunitarismo como ordem fomentadora da vitalidade do mundo e da vitalidade humana.
A partir de uma concepção comunitarista e da construção social do equilíbrio das dinâmicas naturais, o homem andino edifica, coletivamente, o trabalho como uma forma de transcendência, dado ao papel complementativo que o trabalho atribui à existência da Mãe Terra.
O amor incondicional dos andinos à Pachamama, a Mãe Terra, revigora o espírito da reciprocidade dos ameríndios. Nesta perspectiva, o trabalho é considerado um aparato de altíssima virtude que se dispõe de um meio para contemplar a bondade e generosidade de Pachamama. Toda a constituição da sabedoria e concretização da cultura dos povos é resultado do prazeroso trabalho, que concede à figura magnificente da Mãe Terra os votos de agradecimento e engrandecimento dos andinos.

sábado, 25 de dezembro de 2010

O protocolo das controvérsias

Cada vez mais empetecado e oportuno, o mês de dezembro, gradativamente, vai sendo colorido. Os primeiros rajados de cores surgem tímidos, logo na primeira semana do mês com diversas propagandas cinematográficas sobre a chegada das festividades de despedida do ano. Iniciam-se os preparativos para a montagem do set. Chuva de imagens felizes, chuva de cores e brilhos, chuva de luzes na cidade. O vermelho vai tinindo, tênue e progressivamente, até despontar e explodir nos pisca-piscas de árvores mortas e artificiais, nas casas, que, outrora, estavam desabitadas de luz.
A escala cromática do mês de dezembro evoca o espírito natalino. Imediatamente ele se impregna e se incorpora nas mais rentáveis formas de felicidade.  O comércio se esbanja com as regalias da vontade de fazer o outro feliz. Os mais inusitados sonhos são caçados, apreendidos e logo se extinguem quando comprados e presenteados.

De repente surge uma súbita ânsia e um estratosférico desejo de fazer o bem. Uma corrente é formada em prol da solidariedade e das boas ações. A tentativa social é de fazer jus à paz e à harmonia, trazidas miticamente por essa energia do mês de dezembro. E no decorrer do ano, nada de boas ações, tampouco campanhas fraternas. O que impera é o sagaz jeitinho brasileiro da Lei de Gérson, em que o “importante é levar vantagem em tudo, certo?”.
Chega o dia do natal. Os daltônicos não vêem as cores importadas que representam esse período festivo, mas, com toda certeza, sentem a áurea oblíqua e dissimulada do espírito natalino. O bom velhinho esconde-se atrás da barba branca para escolher a dedo quem será presenteado. Afinal quem não tem dinheiro não merece presentes, certo?!
Nas rádios só se ouve as noites felizes na voz de Ivan Lins, além de outras regravações natalinas de BB King, Ramones, Simone, James Brown, Sinatra e muitos outros. O clima mágico do natal contagia e até promove uma vã e única noite feliz para muitas famílias que, uma só vez do ano, se encontram para não quebrar o protocolo social do dia 25 de dezembro.
Ahhh, o Natal! Com carinho e afeto, vamos ao filme do natal. Luz, câmera, ação!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

E nessa onda meio hermética: Imagens do não visto


Uma  resenha do filme Janela da Alma

Entrar em consenso nas discussões inerentes ao mundo e à vida não é uma tarefa fácil. O homem, dotado de sentidos sensitivos, é responsável pela criação da realidade do mundo e, consequentemente, pela criação subjetiva da sua realidade. De acordo com os diferentes graus de percepção, relacionados à atribuição de signos e significantes, as formas de visões de mundo são concebidas pelo uso dos cinco sentidos humanos que, constantemente, dialogam com os diversos contextos culturais da sociedade. A partir dessa abordagem, o filme Janela da Alma, de João Jardim e Walter Carvalho, lançado em 2002, possibilita discussões de cunho filosófico, artístico, psicanalítico e científico, tendo como aparato os limites físicos de diversos níveis de acuidade visual.
Ver o mundo não estabelece uma intrínseca relação com o sentido denotativo da visão. O olho como janela da alma não expressa o espelho do mundo, uma vez que o enquadramento da janela requer a visão de um outro olho, que seria uma nova janela, desencadeando, assim, um processo refletivo infindável, como já havia analisado o poeta Antônio Cícero. Infere-se que a assimilação e visão da realidade atrela-se, intrinsecamente, às emoções idiossincráticas.
O documentário Janela da Alma recorre à perspectiva do ver sem enxergar, através de um debate abstrato e filosófico sobre o tema da visão. O filme constrói-se pelo depoimento de dezenove entrevistados, de míopes a cegos, que discorrem sobre as formas de visão, o fato de não ver e o fato de enxergar a realidade de forma única. Dentre o amplo leque dos debatedores está o escritor José Saramago, o músico Hermeto Pascoal, o poeta Manuel de Barros, o neurologista inglês Oliver Sacks e o filósofo esloveno Evgen Bavcar, que, enxergando o invisível, fotografa o mundo das imagens.
A abordagem e reflexão do tema não se abstêm apenas à fala dos entrevistados. A trilha sonora de José Miguel Wisnick conversa o tempo todo com cada imagem e cada ação dos personagens. A  investigação dos míopes diretores João Jardim e Walter Carvalho propõe às cenas imagéticas a sensação de enquadramento de uma pessoa que utiliza óculos, de um míope que, sem óculos, vê  as pessoas e os objetos em borrões de cores, a sensação de um cego, que cria um mundo particular, e a sensação do cego contemporâneo, envolto pela alegoria da Caverna de Platão, aprisionado pelas cegueira social.
Janela da Alma não apresenta a defesa de uma tese e sua estrutura fragmentada não constitui um enredo linear, permitindo, assim, uma vazão metaforizada das interpretações poéticas e líricas propostas pelo documentário.
A atual conjuntura sistêmica social, vinculada à lucratividade como finalidade única, é criticada pelos diretores, por meio dos depoimentos dos entrevistados. Questiona-se, no documentário, o advento da indústria imagética, que instituiu a toda e qualquer tipo de imagem o caráter propagandístico de venda, fato que desmantela a construção de uma visão filosófica e artística das imagens.
Ganhador de vários prêmios, o filme de Walter Carvalho e João Jardim é de grande relevância para a derrocada da ideia limitadora que invalida socialmente os portadores de deficiência. Pelo contrário, a evidente ratificação da maior sensibilidade desenvolvida pela supressão do sentido da visão, amplia, nessas pessoas, a dimensão de assimilação humanística de fatos corriqueiros, imperceptíveis a um olho que simplesmente vê.


domingo, 19 de dezembro de 2010

Hermética salada à brasileira

   Década de 30, século XX. Nascia, filho inconsciente do movimento antropofágico do modernismo, o pai da brasilidade instrumental do Brasil. Mais precisamente no dia 22 de janeiro de junho de 1936, no município de Lagoa da Canoa, estado de Alagoas. 
   Ele, o início de uma revolução musical no país, cuja base nordestina foi cosmopolizada pelos grandes centros, protagonizou, assim como na literatura de Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, a abertura dos olhos do mundo para a riqueza cultural do Brasil.
   Filho de humildes trabalhadores da zona rural, o albino Hermeto Pascoal foi polpado do trabalho sob o sol. Desde então, um prodígio autodidata, Hermeto passou a se dedicar à pratica do acordeão, a sanfona tocada por seu pai.  Aos doze anos, Hermeto já ajudava a família tocando em bailes e eventos locais, com a companhia de seu irmão mais velho José Neto.
   Com pouca visão e uma audição apurada, o nordestino interessou-se por muitos dos instrumentos com os quais tinha contato nas noites de trabalho. Em pouco tempo já dominava, além do acordeão, piano, pandeiro, flauta, contrabaixo, triângulo, sapatos, barras de ferro, cadeiras, som de animais, percussão corporal. Hermeto, que desde pequeno deslumbrava os sons da natureza, foi de Lagoa da Canoa a Recife, de Recife ao Rio de Janeiro, do Rio a São Paulo e de São Paulo direto para o mundo. Fez-se conhecido como um revolucionário músico da tradição popular nordestina do Brasil. Mesclou o regionalismo nordestino com o samba, o choro e o jazz, agregando à sua música o caráter peculiar da identidade nacional, vinculada às múltiplas facetas e possibilidades musicais da natureza.
   Muito mais do que uma nova visão conferida ao ouvir a miscigenação da cultura brasileira, a obra de Hermeto condiz com a atribuição do belo em virtude do humano.
   Somente depois de 40 anos de reconhecimento nacional e internacional, - aliás uma referência muito mais arraigada no exterior do que no próprio Brasil - o multinstrumentista experimentou estudar na teoria o que ele próprio já ensinava aos músicos acadêmicos na prática. Desde então faz uso da teoria musical e não permite que ela o utilize e o aprisione.
   Hermeto "bateu asas do sertão" e, em um perfeccionismo reatado pela busca da diversidade sonora, ressalta, cada dia mais, o encontro da arte com a cognição sensitiva de um homem.