quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A nova roupagem da tradição



 
A denominação caipira é utilizada, genericamente, para designar os habitantes das regiões situadas, principalmente, no interior do Sudeste e do Centro-Oeste do Brasil. A música caipira é um dos traços marcantes da cultura interiorana. Ao longo das décadas, a adição de novos instrumentos, a utilização de novos rítmos e linhas melódicas e a disseminação da indústria cultural contribuíram para o surgimento da atual música sertaneja. Aos 29 anos, o cantor, compositor e violeiro Almir Pessoa tenta resgatar a cultura caipira por meio da música sertaneja de raiz.

O que vem à sua cabeça quando se fala em música sertaneja de raiz?
Almir Pessoa: Tião Carreiro. Quando se fala em música caipira, pra mim, na cabeça, vem o Tião, porque ele pegou uma viola que era utilizada em festas de tradição e criou essa batida, o pagode. Não estipulou, mas usou muito essa afinação em “cebolão”, em mi maior. Deu um “boom” de música caipira e música sertaneja e rodou o Brasil inteiro.

Qual foi o seu primeiro contato com a música caipira?
Almir Pessoa: O meu contato com a viola se deu em Folia de Reis. Eu comecei, não sei por que “cargas d’água”, a observar os violeiros tocando ali, dançando catira e eu vi um violeiro em particular, um violeiro chamado Jair. E aquela “suingueira” da mão direita, no caso, me chamou a atenção, aliado àquela onda, àquele negócio diferente. Eu já tocava um pouquinho de violão e aquilo me chamou muito a atenção. E naquele dia eu falei “Rapaz, eu acho que eu quero tocar viola”. Um ano depois, eu fui presenteado com uma viola e então comecei a minha trajetória.

Qual é público mais adepto ao gênero caipira?
Almir Pessoa: Dentro do meu estilo, mercadologicamente, creio que meu público alvo é de pessoas de 26 anos pra cima. Eu tenho notado que as crianças têm tido uma afinidade muito grande com a música caipira. Eu digo isso pelo ressurgimento do gênero na mídia por meio de personalidades de programas de televisão, como Inezita Barroso e Rolando Boldrin.

Por que o termo música sertaneja foi usado em substituição ao termo música caipira?
Almir Pessoa: Esse nome música sertaneja foi um termo dado por gravadoras para a música caipira, mais ou menos no ano de 1944, quando surgiu o primeiro selo com a dupla Pedro Benta e Zé da Estrada. Essas músicas vendiam muito desde 1929, quando Cornélio Pires começou com as trupes de música sertaneja, circo e todas aquelas coisas. Isso criou uma efervescência cultural muito grande, porque, com o êxodo rural, as pessoas saíam do campo para ir pras mediações da cidade de São Paulo. Nesse período, Monteiro Lobato teve a infelicidade de criar o personagem Jeca Tatu. As pessoas não queriam ser chamadas de caipira e comparadas ao personagem matuto de Lobato. Elas queriam ser tratadas como urbanas. Percebendo isso, as gravadoras denominaram a música caipira como música sertaneja. Até então era a mesma coisa. Mas começaram os hibridismos musicais. Com artistas, por exemplo, como Léo Canhoto e Robertinho, a música sertaneja hibridou com a música americana e trouxe elementos de faroeste, bang-bang. Ela hibridou e foi se transformando no que é hoje: música sertaneja, sertanejo universitário, sertanejo disso, sertanejo daquilo.


Qual é a receptividade da música sertaneja de raiz no exterior? 
Almir Pessoa: Bem, em Londres, em 2007, eu estava tocando em um lugar chamado Barracuda. Devia ter umas 700 pessoas mais ou menos. Pra público europeu, é muita gente, porque os locais de lá são bem pequenos. Nesse dia, um inglês me falou algo que me chamou bastante atenção. Ele me chamou no particular, depois do show, e me disse o seguinte: “Olha, do Brasil eu conhecia samba, carnaval e mulher pelada. Você trouxe uma mensagem diferente de algo que tem tanto valor quanto o samba e quanto o carnaval”. Acho que esse fato sintetiza bastante, na verdade, a aceitação da música caipira lá fora.

Você sofre preconceito por tocar música caipira?
Almir Pessoa: Por causa da música caipira, eu não sofro preconceito. Por exemplo, a gente está aqui em uma instituição de ensino superior. Aqui, se você entrar dizendo que toca música sertanejo-universitária talvez você venha a sofrer algum tipo de preconceito. Até por esse termo, o sertanejo universitário, nós, que somos universitários, esperamos uma música mais provocativa. Já com a música caipira, acontece diferente. Ela tem uma aceitação maior porque está muito ligada à tradição e à música de raiz.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Uma abortagem shakespeareana




Unânime. A defesa da vida é, universalmente, unânime. Para ser acometido como homem, em sua porção de longínqua e magistral igualdade, a noção de indivíduo faz-se presente com base no conceito de vida e no seu devido desenvolvimento – ou seria no desenvolvimento da devida vida?!
A nossa vigente índole vita-defensorial condiciona-nos, moralmente, às indagações shakespeareanas do ser ou não ser, do ver ou não ver e do ter ou não ter.  Como sempre ocorre nos assuntos-vigas que sustentam os valores da sociedade, dá-se, assim, a discussão sobre a inconstitucionalidade ou legalidade da interrupção de gestações cujos fetos são anencéfalos, ou seja, fetos que só sobrevivem em um estágio intrauterino de sua vida.

Com efeito, o desfavorecimento à legitimidade do aborto nesses casos – sanção que, já em vigor, proferiu o procedimento abortivo legal somente em casos de gestações resultantes de estupro e de gestações cuja vida da mãe corre risco – choca-se, em todas as instâncias cognitivas, com o sentir na pele do que vem a ser mulher. Viver e, sobretudo, sobreviver, física e psicologicamente, à espera de uma vida que, fora do útero materno, de uma forma ou de outra, será fisiologicamente cessada consolida a peripécia do ato de ser.
O ver ou não ver fica a cargo do dito laicismo brasileiro, mesmo que ele não vigore de forma prática nas concepções sociais. O Estado laico e sua respectiva cria social, cada vez mais, regados de moralismos intermediados pelos dogmas religiosos, desconsideram qualquer análise científica da decorrência desse impasse na vida progenitora de uma mulher que abriga uma vida impossível.
Segundo o secretário-geral da CNBB e bispo auxiliar de São Paulo Dom Odilo Pedro Scherer “ela [a Igreja Católica] é a favor da vida e da dignidade do ser humano, não importando o estágio do seu desenvolvimento, ou a condição na qual ele se encontre”. Mas que dignificação é essa que inferioriza a subjetividade do indivíduo? Que o pejora como infrator das leis de Deus diante de uma sociedade e de uma instituição religiosa, sob o jugo da excomungação? Seria uma ordem divina a determinação de que, aleatoriamente, algumas pessoas recebam a dádiva da anencefalia?
Nessa instância, a discussão assume acepções ideológicas, cuja doutrina remete-nos ora ao poderio de influência de instituições medievas, ora à defesa dos direitos humanos – em que humanos, simbolicamente, refere-se à vida e o seu efetivo desenvolvimento.
Os direitos? Tem-se a questão: ter ou não ter?