quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Trans-elucidando

Responsável pela adesão do racionalismo à política e à análise social, o Iluminismo, historicamente, finda as premissas de um mundo teocêntrico. A partir dele, o caminho para a construção da sociedade moderna, nítida e obscura, faz-se aberto. E é nesse momento que a normatização do âmbito social submete-se à razão. Chamado de “Século das Luzes”, esse período perpassa pelo veredicto de que a universalidade do racionalismo é dada como a única forma para alcançar o conhecimento.
O “Penso, logo existo” de René Descartes introduz a noção de indivíduo como agente de transformação social na condição, única e exclusiva, de sujeito pensante. Nesse estágio de uma nova abordagem sociocultural do homem, a aptidão humana de decodificação e reprodução da cultura de uma determinada sociedade é um fator decisivo para a adesão à cosmovisão da cognição.
Nessa perspectiva, consiste-se inapto e, por conseguinte, incapaz o indivíduo que não se adequa às regras de convívio social, seja pela sua incompatibilidade cultural, seja pela sua incompatibilidade de gênios, ou pela sua divergente condição psicológica. Opor-se aos atos e pensamentos padronizados de dada sociedade precipita, na concepção moderna, a idéia de anormalidade, muita das vezes atrelada a algum tipo de patologia psíquica.
Mais do que pelo racionalismo, a nossa humanidade é garantida por meio dos precedentes presságios da loucura. É a aptidão sensitiva aguçada, um dos primeiros sintomas da insanidade, que instiga a avidez do homem para se encontrar reciprocamente com a arte. Como expressão da introspecção humana, o desenvolver-se artisticamente inaugura o homem como produto do espaço e do tempo vivido.

Muito tênue é a linha que limita a loucura e a genialidade. Imaginação, criatividade, memórias, devaneios, desejos, pensamentos, desordens. O subconsciente humano abriga a sensibilidade, fome da arte, que, em um desequilíbrio harmonioso, pode-se confundir com a patologia psíquica da loucura. Van Gogh, representante da vanguarda expressionista do século XX, ao mutilar suas próprias orelhas para se autorretratar, é um exemplo da explícita tenuidade entre o genial e o insano.

Uma vez diagnosticado o estado de deficiência cognitiva, tem-se também o diagnóstico social da estigmatização e da discriminação. Como visto nas psicanálises de Freud, mais do que como uma questão de salubridade psíquica, a loucura deve ser tratada como uma patologia social, que, quando ancorada pelo segregacionismo do pensar metodológico, se desprovê de tratamento.
É nesta patologia social que Shakespeare, em sua obra “Hamlet”, inspira-se para evidenciar a loucura como uma maneira de transgressão das regras e verdades sociais.  Passando-se por louco, o personagem Hamlet abdica-se da razão e eleva a loucura ao patamar de signo dominante no convívio social.
Da lucidez tem-se o prognóstico do racional e da insanidade, o prognóstico do que não se percebe nas entrelinhas.


terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Sarnas tropicais




Já não precisaria se fazer escritores como os de antigamente. Nada de abstrações subjetivas da sociedade, idealizações subversivas, medos e conflitos da instropecção humana, observações regionalista-sociológicas sobre a cultura elementar de um povo. Caminhar nas ruas de um Brasil evasivo já é o bastante para se constatar uma boa história.
As célebres análises machadianas, o socialismo científico de Marx e Engels, as almas aprisonadas de Clarice Linspector e os neologismos de Guimarães Rosa são pequenos perto da obra do Dono do Mar, condecorado membro da política Academia Brasileira de Letras. Como se não bastasse a posse do mar, referenciada pelo título do romance sarnesco escrito em 1995, o Acadêmico detém também o domínio feudalizado do Mar-anhão.
Não só no nordeste do Brasil surgem peripécias que inspiram atrevidas aventuras literárias. Em Brasília, região Centro-Oeste do país, o Senado Federal congrega um amplo espaço que incita o imaginário literário de quem por lá vaga.  Como em um ritual da antropofagia brasileira, lá surgem enredos que se deglutem e se revertem em produtos finais. Dos vários gêneros propícios desses produtos, surgem o drama social, o suspense inflacionário, a comédia da incompetência, o romance partidário e, com difamações e tabefes nas sessões plenárias, temos até um pouco do gênero ação.
Os traços culturais do Brasil apresentam-se de forma demasiada em Brasília, sede do âmbito político do país. Comparadas às centenas de histórias literárias que o Senado pode nos render, o cenário político nacional pode ofertar-nos muitas das nossas frutas tropicais.
O picadeiro frutífero da política brasileira oferece-nos o limão e seu vertiginoso azedume, muitas bananas, especialmente oferecidas aos brasileiros, e, com grande freqüência, muitas laranjas, grandes e suculentas. Como em uma feira de livre concorrência, as laranjas, gordas e apetitosas, nos saem caras com precedentes concisos de corrupção em sua forma genuinamente gersoniana e, em contrapartida, as bananas, nos são oferecidas com cheiro de podridão.
Recatado e discreto, o brasileiro, cuja sagacidade o faz um “brasileirinho” de terno e gravata na presidência do Senado reelege-se pela quarta vez, livre de grande concorrência. Em uma mescla de posseiro de terras e de experiente aristocrata defensor da democracia lúdica, ele se apossa da brasilidade, referida ingenuamente por Gérson, para compor a política da laranja e circo. Nesse perrengue, o “importante é levar vantagem em tudo, certo?” já não se remete à ambição construtiva de querer se dar bem, e sim à ostentação do lucro e do poder.
Comicamente, além de bananas, ganhamos de brinde, muita sarna para nos coçar, fruto das nossas escolhas suprimidas pela ânsia incessante de nos enquadrarmos na tão citada lei de Gérson.
Em pleno século XXI, ainda vivemos na era dos dinossauros dos recantos de Brasília, que se espalham por todo o Brasil. Dos longínquos tempos da ditadura militar de 1964, ainda temos vestígios das sacadas grandiosas dos políticos de cabeça branca, cujos fios foram, gradativamente, consumidos pela experiência do tempo e pela prática de levar vantagem em tudo.
Abacaxis não fazem parte da preferência dos jurássicos. Mais uma fruta para nós, os consumidores de bananas. Não descascamos e não devoramos as bananas, mas descascamos e lidamos – e muito! - com os abacaxis. Somente o frescor das laranjas deve continuar a atiçar o olfato e o paladar dos dinossauros nos próximos dois anos de Presidência do Senado Federal.
 Haja sarna para coçar!