segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

E nessa onda meio hermética: Imagens do não visto


Uma  resenha do filme Janela da Alma

Entrar em consenso nas discussões inerentes ao mundo e à vida não é uma tarefa fácil. O homem, dotado de sentidos sensitivos, é responsável pela criação da realidade do mundo e, consequentemente, pela criação subjetiva da sua realidade. De acordo com os diferentes graus de percepção, relacionados à atribuição de signos e significantes, as formas de visões de mundo são concebidas pelo uso dos cinco sentidos humanos que, constantemente, dialogam com os diversos contextos culturais da sociedade. A partir dessa abordagem, o filme Janela da Alma, de João Jardim e Walter Carvalho, lançado em 2002, possibilita discussões de cunho filosófico, artístico, psicanalítico e científico, tendo como aparato os limites físicos de diversos níveis de acuidade visual.
Ver o mundo não estabelece uma intrínseca relação com o sentido denotativo da visão. O olho como janela da alma não expressa o espelho do mundo, uma vez que o enquadramento da janela requer a visão de um outro olho, que seria uma nova janela, desencadeando, assim, um processo refletivo infindável, como já havia analisado o poeta Antônio Cícero. Infere-se que a assimilação e visão da realidade atrela-se, intrinsecamente, às emoções idiossincráticas.
O documentário Janela da Alma recorre à perspectiva do ver sem enxergar, através de um debate abstrato e filosófico sobre o tema da visão. O filme constrói-se pelo depoimento de dezenove entrevistados, de míopes a cegos, que discorrem sobre as formas de visão, o fato de não ver e o fato de enxergar a realidade de forma única. Dentre o amplo leque dos debatedores está o escritor José Saramago, o músico Hermeto Pascoal, o poeta Manuel de Barros, o neurologista inglês Oliver Sacks e o filósofo esloveno Evgen Bavcar, que, enxergando o invisível, fotografa o mundo das imagens.
A abordagem e reflexão do tema não se abstêm apenas à fala dos entrevistados. A trilha sonora de José Miguel Wisnick conversa o tempo todo com cada imagem e cada ação dos personagens. A  investigação dos míopes diretores João Jardim e Walter Carvalho propõe às cenas imagéticas a sensação de enquadramento de uma pessoa que utiliza óculos, de um míope que, sem óculos, vê  as pessoas e os objetos em borrões de cores, a sensação de um cego, que cria um mundo particular, e a sensação do cego contemporâneo, envolto pela alegoria da Caverna de Platão, aprisionado pelas cegueira social.
Janela da Alma não apresenta a defesa de uma tese e sua estrutura fragmentada não constitui um enredo linear, permitindo, assim, uma vazão metaforizada das interpretações poéticas e líricas propostas pelo documentário.
A atual conjuntura sistêmica social, vinculada à lucratividade como finalidade única, é criticada pelos diretores, por meio dos depoimentos dos entrevistados. Questiona-se, no documentário, o advento da indústria imagética, que instituiu a toda e qualquer tipo de imagem o caráter propagandístico de venda, fato que desmantela a construção de uma visão filosófica e artística das imagens.
Ganhador de vários prêmios, o filme de Walter Carvalho e João Jardim é de grande relevância para a derrocada da ideia limitadora que invalida socialmente os portadores de deficiência. Pelo contrário, a evidente ratificação da maior sensibilidade desenvolvida pela supressão do sentido da visão, amplia, nessas pessoas, a dimensão de assimilação humanística de fatos corriqueiros, imperceptíveis a um olho que simplesmente vê.


Um comentário:

  1. Esse filme é muito marcante.. e melhor ainda é o Saramago nele. Imprescindível vê-lo.

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